Episódio 5: Sr. Rodrigues, Mamo e o Demônio da Culpa


Eram cinco horas da manhã, quando Sr. Rodrigues ouviu o som de um sino. Ele soube então que era hora de se levantar. Alguém de Bafalândia estava acordando-o, provavelmente os protetores das montanhas. Que sutileza para seres tão grandes usar o som de um pequeno sino. 

Sr. Rodrigues estava feliz em acordar naquele ambiente tão acolhedor. A lareia se mantinha constantemente acesa desde quando chegou, e ainda na cama podia sentir o cheiro do café da manhã disposto na mesa. Ele já tinha entendido de sua jornada anterior, que a comida que lhe davam em Bafalândia era puramente ilustrativa, por que a sua mente achava que tinha que comer. 

A comida no planeta Terra tinha um caráter imensamente compensatório, um valor emocional muitas vezes maior do que a necessidade nutricional do corpo. E isso ficou tão claro para ele depois de perceber que não fazia suas necessidades fisiológicas quando estava em Bafalândia, nem mesmo o seu corpo fedia por não tomar banho, ou sua boca por não escovar os dentes. Então, a comida e a bebida entravam e não saiam? Para onde elas iam? De onde elas vinham? 

Mesmo ficando um mês em Bafalândia, sr. Rodrigues não conseguiu mudar daquela vez a necessidade de comer, contudo depois que acordou em seu mundo percebeu que não precisava de tanta comida e passou a degustar mais cada refeição. Aprendeu a apreciar com atenção. 

O café da manhã era bem simples, e se estava ali, era por que era importante comer naquele horário. O desjejum estava disposto numa bandeja de prata como sempre. A louça era do mesmo tipo da refeição do dia anterior, uma porcelana na cor azul turquesa, bem simples, mas ao mesmo tempo rica em sua aparência. Havia um prato com um pedaço de pão artesanal regado com azeite, uma cumbuca com maças cozidas com canela e pedaços de cravos, e uma xícara de café preto que parecia ter sido coado recentemente, tamanho era o seu aroma. Sr. Rodrigues se sentiu profundamente grato pelo cuidado e antes de comer fez uma prece de agradecimento e uma aspiração de que todos os seres que estavam passando fome na Terra pudessem ser saciados, que a humanidade pudesse aprender a se suprir de forma equilibrada com a Terra. 

Terminada sua refeição, sr. Rodrigues saiu da cabana para ver o sol nascer. Se o nascer do sol na Terra era tão lindo, quando o horizonte estava límpido, imagine ali em Bafalândia. Por um tempo deixou sua mente aquietar e repousar naquela beleza e na imensidão do céu azul rosa alaranjado. Passado um tempo, se voltou para sua casinha de retiros para fazer suas práticas de meditação e contemplação. O momento oportuno de encontrar Mamo chegaria naquele dia. 

Contudo, as treze horas da tarde chegou e nada dela aparecer. Em vez disso, sr. Rodrigues ouviu de novo o som de um sino e simultaneamente o cheiro de comida. “Deve ser o almoço”, pensou se levantando rapidamente, não porque estava com fome, mas porque queria ver quem trazia a comida. “Tolice!”, pensou consigo, “Como posso achar que posso ver um ser mágico pegando ele na surdina?”, e começou a rir de si mesmo, apreciando sua refeição, uma macarronada ao sugo. “Eles só estão me mimando, trazendo comidas que eu gosto, será que amanhã será assim também? Um bom chef de comida italiana iria achar isso surreal”. Sr. Rodrigues se maravilhava com as aparências mágicas de Bafalândia que pareciam tão reais para ele. No fundo de sua mente parecia ouvir a voz de Sitara dizendo: “É a sua mente que dá realidade às coisas, é ela que ao olhar concretiza”. 

Terminada a refeição, Sr. Rodrigues descansou um pouco e voltou para suas práticas. Passado algum tempo, cerca de uma hora, repentinamente, ele ouviu um barulho, que parecia ser de passos. “Deve ser Mamo!”, se levantou instintivamente. Ao sair da casa, olhou pelas redondezas e não viu ninguém. Decidiu então voltar para dentro, mas ao passar pela porta, algo a acertou. Ficou perplexo ao perceber que foi uma pedra. “Quem jogaria uma pedra em Bafalândia? Logo aqui um lugar tão pacífico e amoroso?” 

_ Quem está aí? Por favor, apareça – Sr. Rodrigues falou alto, sem nenhuma resposta. 

Ao passar de novo pela porta, outra pedra entrou porta à dentro passando bem perto de sua cabeça. Sr. Rodrigues sentiu a energia da raiva vir à tona como um fogo, um vulcão em quase erupção, e logo rapidamente respirou profundamente acolhendo sua raiva conscientemente e a dissolvendo por completo. Já não era um praticante tão iniciante assim na meditação, já sabia observar suas emoções sem deixar que elas tomassem conta dele totalmente. Em seguida pensou consigo mesmo: “Carlos, você está em Bafalândia, hoje é dia de encontrar Mamo, isso deve ter algum sentido”. Então, ele entrou na casa fechando a porta rapidamente, esperando ver o que iria acontecer. 

_ Você sempre me ignora – gritou uma voz. 

Sr. Rodrigues ficou gélido, era voz de uma criança. Abriu a porta e perto da descida da montanha viu um garoto, devia ter por volta de uns oito anos, ele tinha um semblante triste e bravo. 

_ Foi Mamo que te enviou garoto? 

_ Não conheço nenhuma Mamo. 

_ Então, foi Sitara? 

_ Nunca ouvi esse nome. 

_ Então, como você pode estar aqui em Bafalândia se não as conhece? 

_ Bafalândia? Eu não estou em Bafalândia nenhuma. Você que está inventando coisas. Me ignora e inventa lugares e pessoas para fugir de mim. 

Sr. Rodrigues ficou confuso por um tempo e depois perguntou: 

_ E onde nós estamos então, garoto?! 

O garoto olhou para ele com uma cara tipo daquele boneco do filme “O Brinquedo Assassino” (sabe?), e disse: 

_ Você não vê? Você está em meu mundo agora, finalmente em meu mundo – e começou a rir de maneira assustadora. 

Sr. Rodrigues viu tudo a seu redor mudar completamente. Ele estava num hospital abandonado, antigo, com pouca iluminação. Instantaneamente pensou, “Mamo, eu sei que é você, eu sei que chegou a hora, não me deixe desconectar de seu amor, por favor”. A seguir, ele começou a ouvir o som de um bebê chorando, ao mesmo tempo em que ouvia o som assustador da gargalhada do menino ao fundo e ainda um terceiro som, o de uma mulher gritando de dor. Por um tempo ficou confuso sem saber o que fazer, então se acalmou e silenciou sua mente. Nesse estado de ser, ele percebeu que o som do bebê estava mais perto. Começou a se guiar pelo som entre os corredores do hospital, até que descendo umas escadas que davam numa lavanderia desativada, ele avistou dentro de um cesto de lençóis um bebê. 

Rodrigues correu desesperado para pegar a criança pequena. Ele tirou seu casaco e a envolveu aconchegando-a em seu peito: “Está tudo bem agora, eu te encontrei, está tudo bem!” A criança continuou a chorar e ele sem saber o que fazer só a ninava e chorava junto com ela: “Sinto muito bebezinho, eu não sei o que fazer com você? Você está com fome? Sente alguma dor? Mamo, Mamo o que isso significa?”, suplicou por respostas. 

_ Deixe essa criança aí, ela não serve pra nada, ela nasceu para estragar a vida de todo mundo, ela não é nada, eu a odeio – gritou o menino enfurecido. 

Sr. Rodrigues se levantou calmamente e disse: 

_ Não importa. O bebê agora é meu e eu vou tomar conta dele goste você ou não. 

Assim que falou isso, Rodrigues ouviu a mulher gritar. Ignorando o menino, saiu então à procura dela. Talvez fosse a mãe do bebê. Ele subiu as escadas para o terceiro andar do hospital, e se guiando pelo som dos gritos, a encontrou sozinha deitada numa mesa de parto. 

_ Me ajude senhor, levaram meu bebê e me deixaram aqui sangrando. 

_ Eu acho que o encontrei – disse sr. Rodrigues meio trémulo. 

_ O senhor o encontrou?! O senhor o encontrou! Bem aventurado o senhor por trazer o meu bebê de volta pra mim. Ele deve estar faminto. São muitos os anos! 

Carlos se aproximou da mulher um pouco confuso com aquela história de anos, talvez ela estivesse alucinando. Ele aconchegou o bebê nos braços da mãe junto ao seu peito de modo que ela pudesse dar de mamar para o filho. A criança parou instantaneamente de chorar e mamou no peito da mãe de maneira muito afoita. Carlos ficou ali segurando o bebê e olhando para ambos com doçura. Uma sensação de amorosidade tomou conta de seu coração. Aquela mulher lhe era tão familiar. Sentiu um amor e gratidão profunda por ela, pela vida que fluía dela para o bebê. E de maneira espontânea ele então disse: 

_ Obrigada mamãe pela vida que você me deu, sinto muito por ter sido a causa da sua partida, por ter criado tanta dor para papai também. Ele a amava tanto! 

_ Carlinhos, meu filho?! Como você se tornou um homem tão bonito!! Eu também sinto muito por ter lhe abandonado. Eu queria ter lhe dado de mamar e agora estou realizando o meu sonho. Olha como você era tão gordinho?! Eu morri tão fraca que não pude contemplar sua face. Obrigada por me trazer você de volta filho querido! 

Carlos abraçou sua mãe e a si mesmo como bebê, chorando profundamente o que os anos lhe negaram chorar por não ter conhecido sua mãe. 

Passado algum tempo, sua mãe lhe disse: 

_ Querido filho, agora que você nos encontrou, precisa ir atrás dele. 

_ De quem mamãe? 

_ Daquele menino raivoso e triste. 

_ E quem é aquela criança mamãe? 

_ Você precisa ir atrás dele Carlinhos, você se esqueceu dele. 

Carlos queria ficar ali com sua mãe e consigo mesmo como bebê, mas sabia que tinha que ir atrás do garoto. 

_ Acho que ele está no cemitério do hospital – disse ela intuitivamente. 

Carlos então abraçou sua mãe mais uma vez e foi em busca do menino. Saindo do hospital pela parte de trás, além do jardim sem flores, ele viu o cemitério. Caminhando pelo lugar, reconheceu como sendo o cemitério de sua cidade natal, onde parte de sua família, incluindo sua mãe e seu pai, estavam enterrados. Ele sabia onde o menino estava, ele sabia que bastava ir ao túmulo do seu pai... 

_ Encontrei você garoto! 

O menino olhou para ele e não tinha mais a face de raiva, mas ainda de uma profunda tristeza. Carlos se aproximou, um pouco com cautela, ao perceber que o garoto estava inofensivo. 

_ Ele não gostava de mim – disse o menino. 

Carlos se assustou. 

_ Meu pai? O que ele era seu? 

O menino olhou para Carlos profundamente em seus olhos. Ambos ficaram em silêncio... 

_ Você não se parece como quando eu era criança. Desculpe, não o reconheci, garoto. 

_ Você não me reconheceu, porque me esqueceu. Eu sou um estranho para você, Carlos – falou num tom quase adulto. 

_ Eu precisei me esquecer de você garoto, para esquecer a minha dor. Não foi por mal, entende? Eu precisava me defender. Eu não tive mãe, porque ela morreu quando nasci, e não tive pai, porque ele me culpou pela morte dela. Fomos criados num colégio interno e depois... Depois que cresci, segui pela vida sem pai e mãe. Eu queria esquecer meu passado. A morte levou papai também muito cedo, nos tornando mais estranhos ainda sem uma despedida. 

_ Eu também quero esquecer o passado, Carlos. Durante muitos anos estou sozinho, ouvindo aquele bebê chorão e aquela mulher gritar. E agora eu sei como fazer... Finalmente, eu sei o que fazer. 

_ Como assim? – se assustou Carlos. 

_ Vou morrer também! – ao dizer isso o garoto saiu correndo pelo descampado, e Carlos instintivamente correu atrás dele. 

_ Volte aqui Carlinhos!!! Volte aqui, por favor!!! 

O garoto era bem rápido e subiu sem esforço um morro perto do cemitério. Carlos não hesitou, o seguindo por uma trilha que parecia muito familiar. Sua mente logo se recordou que a trilha levava para uma parte do morro que acabava num paredão bem alto. Um lugar que costumava ir quando era adolescente e vinha visitar a família de férias em sua cidade natal. Um refúgio que abrigava muitas recordações, falas não ouvidas e sentimentos de morte. Então, ele se apressou para tentar deter o garoto antes que ele pulasse morro abaixo. 

_ Carlinhos, me desculpe por ter te esquecido!! Por favor, volte para mim!! 

_ Eu não vou voltar. Você me esqueceu. Você não me ama como o papai. Eu matei a mamãe. Eu sou horrível! 

Quando Carlos olhou, o menino estava no alto do paredão, olhando para baixo. 

_ Você era só um bebê, Carlinhos. E mamãe nos deu a vida por amor a gente. 

_ Mas nossa vida foi sem amor, Carlos! De que adiantou ela morrer então? 

_ Ela fez a parte dela nos dando a vida, meu querido! E hoje eu sou muito grato por essa vida!! 

_ Mas nós perdemos Andressa e as crianças também. Nós não merecemos viver. Nós não merecemos o amor. 

_ Sim, nós os perdemos também. Mas mesmo assim, eu quero viver e quero que você viva comigo. 

_ Por que? Pra que, Carlos? 

_ Porque eu te amo! Eu te amo muito, Carlinhos. Quando eu te esqueci, esqueci desse amor também. E agora que te encontrei, eu encontrei esse amor também. Venha comigo! Vamos iniciar uma nova aventura! Vamos nos conhecer de novo! Eu prometo que não me esquecerei mais de você. Eu prometo que estarei presente com você dentro de mim. Você quer? Quer vir comigo? Que embarcar nessa nova aventura? 

O garoto se agachou e começou a chorar. Carlos se aproximou e o abraçou como um pai acalentando um filho, mas que estava acalentando a si mesmo na verdade. Os dois choraram juntos por um tempo, e depois de um tempo, o silêncio se fez presente... 

Quando Carlos se deu conta, toda aquela paisagem tinha se desfeito, ele estava em Bafalândia, nos braços de Mamo. Ela era negra como a noite e brilhava como as estrelas num céu infinito. Contemplando a sua face profundamente amorosa, ele ali se aconchegou em seus braços como uma criança pequena e amada, e assim nesse estado de profundo relaxamento, finalmente descansou a sua mente, se tornando inseparável d’Ela. 

Continua...